Leticia Ferreira Camargo
(UFSC)
O Discurso de Artistas Indígenas Contempor Neos Brasileiros: Música, sobrevivência, e resistência linguística
Este trabalho busca discutir artistas indígenas brasileiros que cantam em língua indígena e/ou sobre questões indígenas, visando contribuir para o debate sobre os discursos indígenas atuais, a participação de jovens indígenas na luta ativa por espaço e reconhecimento frente a população brasileira, e inclusão da vozes, narrativas e saberes indígenas em espaços de poder, fundamentado em estudos de política linguística, fortalecimento linguístico e a trajetória violenta da língua portuguesa no Brasil. As falas de artistas de diferentes gêneros musicais e etnias em excertos de 26 entrevistas e reportagens foram analisados, sendo eles Brô MCs, Arandu Arakuaa, Oz Guarani e Wera Trap MC, Kaê Guajajara, Kunumi MC, Katú Mirim, Djuena Tikuna, Androyde Sem Par, Nory Kayapó, e Brisa Flow, atentando para suas manifestações musicais e em como i) formas de resistência, ii) afirmação de identidade e protagonismo de suas próprias narrativas, iii) busca de valorização e revitalização da cultura, iv) esforços de divulgação para e conscientização da população não-indígena.
Os artistas se opõem ao apagamento histórico de suas culturas, que resistiram ao massacre ao longo dos séculos. Apagamento este que possibilitou o surgimento não apenas da crença de que os índios pertencem apenas ao passado, mas também a noção de um índio genérico, utilizada como estratégia de homogeneização, colocando todos em uma mesma categoria de indianidade romantizada, destituindo-os de suas singularidades. Isso está presente nas falas dos artistas: Bruno Veron do Brô MC’s diz que o rap serve para apresentar a voz indígena no Mato Grosso do Sul, que não vivem nús e em ocas, Kaê Guajajara relata uma experiência na qual uma pessoa se espantou com ela e a família comendo hambúrguer, e Kunumi MC diz que no início foi criticado por aqueles que afirmavam que o rap não é da cultura indígena. Do outro lado do índio genérico está a unificação discursiva em formas como “nós índios” usada como reafirmação dos pontos em comum, uma aliança indígena pan-étnica, que se mostra também quando um artista indígena se apresenta com sua música para o público.
A luta dos artistas não é apenas pela preservação de suas línguas mas sim de suas materialidades e modos de viver como pode ser visto nas falas de Djuena Tikuna, pesquisadora da musicalidade Tikuna, ao afirmar a importância da cantoria na identidade indígena, e de Zândhio Huku, da banda Arandu Arakuaa, de que para entender a luta indígena é preciso entender a mescla entre natureza e sagrado na visão de mundo indígena. Os artistas têm na música uma ferramenta para denunciar a violência e desmatamento, como o grupo Oz Guarani e Wera Trap MC, apontar as dificuldades e conflitos da vida urbana como Katú Mirim e Brisa Flow, enquanto Androyde Sem Par fala sobre auto identificação, e Nory Kayapó busca falar na sua língua sobre a diversão. Iniciativas como a Rádio Yandê, o Yby Festival de Música Indígena Contemporânea do Brasil, e o Festival Intergalático dos Povos Originários colaboram com a divulgação da arte e cultura indígena. Os esforços dos artistas não se resumem às suas músicas, a arte que produzem é reflexo das lutas diárias, das vivências, e das violências a que estão sujeitos em uma sociedade que busca cercear e dificultar suas próprias existências.
Com a apropriação das novas tecnologias, os artistas fazem suas vozes ecoarem pela internet, buscando transformações sociais necessárias para garantir sua sobrevivência, e a valorização de suas indianidades, múltiplas e diversas. Compreender a existência de muitos modos de ser indígena e em contextos diferentes é essencial para a evolução dos debates acerca das questões que permeiam o universo indígena atual. Acredito que essas vozes e discursos possam contribuir para os debates sobre a condução de planejamentos e políticas linguísticas locais que contemplem a valorização não apenas das línguas indígenas, mas também de seus discursos e suas práticas.
Lilian Abram dos Santos
(UFG)
Levantamento das pesquisas em linguística indígena: 1990-2019
Esta comunicação tem como objetivo apresentar resultados preliminares do estado da arte das pesquisas em línguas indígenas desenvolvidas no Brasil a partir dos anos 1990 e até 2019. Trata-se, inicialmente, dos resultados decorrentes de uma pesquisa quantitativa, em andamento, que tem como objetivos específicos investigar: as línguas pesquisadas; as dimensões linguísticas descritas e analisadas; os referenciais teóricos; as metodologias predominantes e as instituições envolvidas. Posteriormente, pretende-se que a análise dos dados possibilite depreender as relações entre sociedade e universidade, pois inventariar uma área de conhecimento, dentro de uma determinada série histórica, pode ampliar nossa percepção para os diálogos e as inter-relações que a universidade pública estabelece, ainda que não explicitamente, com a sociedade através dos temas e percursos de suas pesquisas. Dessa forma, a comunicação irá apresentar um quantitativo da pesquisa descritiva, tipológica e teórica com línguas indígenas, a partir do levantamento de artigos publicados em catorze periódicos vinculados a programas de pós-graduação em Letras e Linguística de universidades públicas brasileiras. O estado da arte almeja dar continuidade a levantamentos feitos por pesquisadoras da área, tais como Seki (1999, 2000), Franchetto (200) e Leite e Franchetto (2006). Em seu levantamento feito no final dos anos 1990, Seki visualiza a virada dos anos 80 para os 90 como um período fértil para as pesquisas com línguas indígenas, o que nos permite supor os anos seguintes como produtivos para a publicação de artigos, sendo, portanto, uma data para estabelecer um recorte histórico para o início do levantamento. Os levantamentos feitos pelas referidas pesquisadoras revelam que a pesquisa em línguas indígenas se manteve constante dos anos 80 aos anos 2000, tendo um boom na década de 1990. No entanto, os mesmos levantamentos foram feitos predominantemente sobre dissertações e teses, o que nos leva a considerar o desafio da divulgação das pesquisas a partir da publicação de artigos em periódicos científicos. Dessa forma, periódicos vinculados a programas de pós-graduação foram eleitos como base de dados justamente para levar em conta a circulação do conhecimento entre pesquisadores de dentro e de fora da área da linguística indígena. Os periódicos investigados são aqueles vinculados às universidades levantadas por Seki (1999) como espaços privilegiados na produção de pesquisa em linguística indígena e formação de pesquisadores/as, nas décadas de 1980-2000. A partir da primeira etapa da investigação, com base em aproximadamente 14 periódicos com fluxo regular de publicação, tem sido possível termos um panorama das línguas pesquisadas, dos níveis linguísticos pesquisados e das perspectivas teórico-metodológicas. Espera-se, ao final da pesquisa, com o cruzamento dos dados, ser possível saber quais línguas foram mais pesquisadas, e quais as instituições com maior produção na área. Algo que já vem se revelando é a pouca presença de artigos sobre línguas indígenas em volumes temáticos não específicos à linguística indígena. Tal informação precisa ser melhor processada para tirarmos dela alguma conclusão. Por enquanto, chama-nos a atenção o fato de isso poder indicar pouco diálogo entre a pesquisa em línguas indígenas e a pesquisa com o português brasileiro, por exemplo. Pesquisas do tipo estado da arte são capazes de fornecer bons panoramas de uma determinada área do conhecimento, no entanto, não se pode esperar delas uma fotografia precisa da totalidade do conhecimento produzido, uma vez que recortes metodológicos são necessários a fim de operacionalizar o levantamento e a análise dos resultados. Espera-se que a comunicação, assim como a pesquisa, num tempo futuro e de modo mais amplo, possam fornecer dados importantes para todos que são interessados nas línguas indígenas brasileiras e na relação delas com a universidade brasileira.
Rejane Cristine Carneiro Santana
(UEFS)
A catequese da Nação Kiriri: trajetória de tapuias e inacianos no semiárido baiano
Neste trabalho, apresentaremos a “arte de doutrinar” em língua Nhengaíba, a missão jesuítica e o contato intercultural entre inacianos e indígenas no sertão da Bahia. Tendo como destaque os Tapuias do Sertão que, durante o processo de catequese, posicionaram-se como inimigos dos colonizadores e também de algumas etnias indígenas da costa litorânea. Assim, foram versados por um discurso hegemônico, etnocêntrico e colocados como coadjuvantes nesse período sócio-histórico da catequese no Brasil (século XVII). Na perspectiva da história social da língua, da cultura da escrita e por um viés historiográfico sobre fatos deixados pelo tempo para recompor narrativas, nos propomos a reinterpretar acontecimentos desse contexto social e linguístico, apoiados em Mattos e Silva, (2004); Pompa (2002); Leite (2000); Cardim (1997); Miranda (2007); Rodrigues (1994); Paixão de Sousa (2006) que trazem uma abordagem acerca do processo de escolarização das aldeias dos sertões, como também da aprendizagem de línguas indígenas para melhor fruição do processo da doutrinação católica e escolar. Dessa forma, buscamos conhecer o caminhar da catequese pela Companhia de Jesus, instigando-nos sobre a missão desses inacianos em insistir com a proposta de doutrinar os “Tapuias do Sertão” língua Kiriri e manter esses indígenas em suas aldeias, ação que era contrária às práticas de descimentos, entretanto, firmada por meio de autoridades religiosas. Dessa forma, discutiremos a revolução da catequese nas aldeias do sertão baiano e os frutos da produção escrita concernentes a uma política linguística para a língua Kiriri, como: A Arte de Grammatica da Lingua Brazilica da Nação Kiriri (1699) e o Catecismo Kiriri (1698), ambas obras assinadas do padre jesuíta Luiz Vincencio Mamiani. Apesar do etnocentrismo, a arte de doutrinar em língua Tapuia revolucionou a catequese do sertão, sobretudo, pelo domínio de uma língua emblemática (Nhengaíba) que tantos obstáculos causou à comunicação, nesse contexto histórico. Assim, o registro da língua e dos costumes da nação Kiriri ficam como maior legado desse encontro intercultural entre a nação Kiriri e os seguidores de Loyola.
Vera da Silva Sinha
(Universidad de Las Palmas de Gran Canaria / Heinrich Heine Universität, Düsseldorf)
Perspectivas amazônicas sobre o tempo e quantificação em cognição e comunicação
Em nossas pesquisas anteriores (Sinha et al. 2011; Silva Sinha, 2019) estabelecemos que em Amondawa, Huni Kuĩ, Awetý e Kamaiurá, o tempo não é métrico, ou seja, o tempo não é medido em termos de sistemas calêndricos ou em termos precisos como o relógio. O conceito de tempo nestas culturas é baseado em eventos. O evento é algo que acontece ou ocorre no ambiente social ou na natureza. A principal característica do tempo baseado em eventos é o próprio evento, como, por exemplo, os estágios da vida, intervalos do dia e da noite e os intervalos sazonais, época da chuva e da seca. A duração dos intervalos baseados em eventos não é medida numericamente e precisamente, como é realizado em tempo métrico (um mês, dois meses, vinte horas, etc.). Porém, isso não significa que esses povos possuem “culturas sem tempo”, pelo contrário, os conceitos de tempo com base em eventos configuram a base de um mundo bem complexo e tradicional, que caracteriza os povos da Amazônia e do Xingu.
Nessas culturas, o passado e o futuro não estão atrás ou na minha frente, mas no meu coração, nos meus olhos ou na minha mente. Além disso, verificamos também que em Huni Kuĩ, Awetý e Kamaiurá, existem práticas em que se utiliza a ‘contagem’ que qualifica a finalização de eventos, mas isso não tem base em nenhum sistema de calendário ou de medidas precisas; essas práticas são baseadas em atividades e na completa finalização do processo ou da ação desse evento. Partindo desses fatores, surgiu a questão crucial sobre qual seria o papel desempenhado pelos numerais na quantificação dessa atividade. Em busca de resposta, este projeto investigará a relação entre tempo e numerais, com foco no papel da linguagem e da cultura na configuração dessa relação na cognição humana. Investigaremos o papel do número na medida de tempo em três comunidades indígenas brasileiras, usando experimentos cognitivos e tarefas não linguísticas com análise de comunicação multimodal (fala com gestos). As três comunidades Huni Kuĩ, Awetý e Kamaiurá, têm em comum um sistema quantificacional com menos de cinco numerais básicos e seus intervalos de tempo são exclusivamente baseados em eventos, os quais são intervalos de tempo indexados a um evento ou atividade (Da Silva Sinha, 2019). Neste projeto procuramos contribuir para a resolução das controvérsias sobre o papel da linguagem e artefatos culturais versus capacidades inatas em conceitos de número e tempo (Núñez & Cooperrider 2013; De Hevia and Spelke 2009; Núñez, 2017; Bender, 2018). Nesta comunicação apresentaremos o raciocínio para o desenvolvimento desta pesquisa e como os resultados serão usados na educação indígena e na revitalização da língua/cultura; além de contribuir para a compreensão das relações homem-meio ambiente nas sociedades tradicionais amazônicas.
Referencia
Bender, A. et al. 2018. Variability in the alignment of number and space across languages and tasks. Front. Frontiers in Psychology, 9, 1724.
De Hevia, M.D. and Spelke, E.S., 2009. Spontaneous mapping of number and space in adults and young children. Cognition, 110, 198-207.
Núñez, R. & Cooperrider, K. 2013. The tangle of space and time in human cognition. Trends Cog. Sci, 17, 220–229;
Núñez, R. 2017. Is there really an evolved capacity for number? Trends Cog. Sci. 21, 409-424;
Silva Sinha, V. da. (2019) Event-based time in three indigenous Amazonian and Xinguan cultures of Brazil. Frontiers in Psychology (Section Cultural Psychology) 10, 454 1-21. doi: 10.3389/fpsyg.2019.00454
Sinha, C., Silva Sinha, V. da, Zinken, J. and Sampaio, W. (2011) When Time is not Space: The social and linguistic construction of time intervals and temporal event relations in an Amazonian culture. Language and Cognition 3(1): 137-169.
Romário Duarte Sanches
(UEAP)
Políticas linguísticas na área indígena dos Karipuna do Amapá: o caso do kheuól
Este artigo apresenta as políticas linguísticas in vitro e in vivo nas aldeias indígenas do povo Karipuna do Amapá, localizadas na região fronteiriça entre Brasil e Guiana Francesa. Como referencial teórico, adotam-se conceitos e questões amplamente discutidos por Haugen (1972), Rousseau (2005), Calvet (1996), Shohamy (2006), Spolsky (2004), Robillard (1997), entre outros, relacionados ao campo de políticas linguísticas, com destaque para aquelas destinadas às populações indígenas brasileiras. Os resultados apresentados provêm da análise de dados quanti-qualitativos coletados por meio de questionário sociolinguístico aplicado a 36 indígenas bilíngues (falantes de português e kheuól) da etnia Karipuna do Amapá. A partir desses dados, foi possível constatar quais políticas são reivindicadas ao poder público e quais estão sendo implementadas pela comunidade em prol da manutenção do kheuól nas comunidades Karipuna.
Autores: Romário Duarte Sanches e Kelly Cristina Nascimento Day
Águeda Aparecida da Cruz Borges
Uma prática conjunta de resistência: alfabetizar na língua munduruku
Com a luta do movimento indígena, a Constituição Federal de 1988, passou a contemplar-lhes direitos específicos, dentre eles o direito à educação escolar indígena, específica e diferenciada do modelo único adotado há séculos, no país. O reconhecimento desses direitos possibilita que, cada povo, considerando seus projetos de vida e necessidades, possa planejar e inventar a escola necessária de acordo com seus interesses. Contudo, muitos sabem que a diversidade de saberes entre eles, levando em conta as especificidades de cada etnia, não cabe nos modelos e sistemas fechados de educação da chamada Escola Moderna, com seus conteúdos disciplinares, pré-estabelecidos por técnicos que sequer conhecem um mínimo das culturas e dos objetivos desses povos. Fazer tais afirmações, com fundamentos na lei, é simples, mas transformá-las numa realidade é complexo. Mas, não é impossível como mostramos e analisamos uma das ações do Projeto IBAOREBU, do Povo Munduruku, realizado no alto Tapajós, Pará. Foram cursos de formação em serviço, nível médio integrado, nas áreas de magistério intercultural, técnico em enfermagem e técnico em agroecologia. Os estudantes não deixaram o trabalho para estudar, o trabalho fez parte essencial, assim como a participação das famílias, das lideranças, nos “tempos comunidade”, “nas mesas dos saberes”, preenchendo parte da carga horária. No “tempo escola”, as atividades presenciais do projeto aconteceram na aldeia Sai-Cinza, município de Jacareacanga/PA. A experiência, no “tempo escola” aconteceu entre novembro e dezembro de 2014, com cem estudantes de magistério, na área de alfabetização em língua materna. Três professoras da área de Letras, uma antropóloga da FUNAI, um odontólogo da SESAI participaram na coordenação das ações, assim como os professores e estudantes Munduruku, que estiveram atentos, para que a proposta fosse entendida pelos participantes, uma vez que são todos falantes de munduruku, sua língua materna, tendo o português como segunda língua. Os conteúdos se complementam no exercício de pensar e buscar a compreensão de questões reais, em acontecimentos e problemas que precisam ser interpretados, entendidos e, se possível, resolvidos. Neste caso, a proposta de trabalho para aquele “tempo escola” foi apresentar, discutir e praticar uma metodologia de alfabetização, na língua materna, que desse segurança e pudesse contar com a criatividade que caracteriza os estudantes/professores do IBAOREBU. Na época, o que vivenciavam os Munduruku do Médio e Alto Tapajós era de grande relevância e precisava se inscrever nas ações pedagógicas do Projeto. O governo federal pretendia instalar um complexo de sete usinas hidrelétricas no Rio Tapajós, numa região habitada tradicionalmente pelos Munduruku e por populações ribeirinhas, sem realizar a consulta prévia, livre e informada às populações, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, ratificada pelo Estado brasileiro. Por esse motivo, o processo que vinha sendo conduzido pelo governo federal era duramente criticado pelo Ministério Público Federal, que denunciou diversas irregularidades, dentre elas a afirmação de que nenhuma população indígena ou ribeirinha seria afetada. Considerando aquele momento histórico e a garra com que os Munduruku costumam enfrentar os problemas, pensamos em levar um debate sobre a língua, linguagem, letramento que desse uma força ao enfrentamento com o governo. Naquelas condições de produção, decidimos apresentar e discutir conceitos básicos do grande educador brasileiro, Paulo Freire (1921-1997), como proposta para os trabalhos de alfabetização, entendidos pelo autor como “ação cultural para a libertação”. Feita a escolha metodológica, preparamos uma pequena síntese das fases do trabalho, lembrando que a estratégia deveria ser recriada pelo alfabetizador, adaptando-se sempre ao grupo de pessoas que alfabetizam: crianças, jovens ou adultos. A experiência vivida foi significativa e deve circular.
Leonardo Machado
(UFRJ)
Variação prosódica das interrogativas disjuntivas nos falares da Região Amazônica
As interrogativas disjuntivas são aquelas que oferecem duas ou mais opções, das quais, pelo menos uma delas deverá ser escolhida como resposta. Os elementos sempre aparecerão conectados pela conjunção alternativa “ou”, como no exemplo: “Você prefere leite ou café?”. Por muito tempo, os estudos dedicados a encontrar as características entoacionais dos tipos frásicos pouco se dedicaram para o tratamento da questão alvo neste estudo, sobretudo no Português Brasileiro (PB), em que as pesquisas entoacionais a investigar a questão disjuntiva são escassas, destacam-se trabalhos recentes, tais como Lira (2009) e Rosignoli (2017), as quais, ao averiguar a entoação brasileira, compreenderam a pergunta disjuntiva no escopo de suas análises. A presente proposta surge como uma iniciativa de completar o quadro da gramática entoacional do PB e, além disso, visa enriquecer as descrições da realidade linguística desejadas pelo Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), projeto o qual este trabalho está integrado. No seio deste Atlas, as questões totais (“Você vai sair hoje?”) e as assertivas (“Eu vou sair hoje.”) já haviam sido descritas para as 25 capitais brasileiras abarcadas pelo projeto (Silva, 2011 e Silvestre 2012, respectivamente), sendo assim, o presente estudo surge para completar a lacuna deixada para a caracterização das disjuntivas. Para cumprirmos com essa tarefa, selecionamos sete capitais que fazem parte do complexo regional da Amazônia, a saber: Manaus, Rio Branco, Macapá, Belém, Porto Velho, Boa Vista e Cuiabá. Nossos dados advém do questionário de prosódia do ALiB e, em cada capital, foram inspecionadas as produções de oito informantes (quatro homens e quatro mulheres) estratificados, equitativamente, segundo a faixa etária (18 aos 30 anos e 50 aos 65 anos) e segundo a escolaridade (aqueles com escolaridade incompleta e aqueles que possuem formação superior). Para compreendermos as características prosódicas que se distribuem no interior do contorno melódico da pergunta em estudo, dividimos as sentenças em três unidades entoacionais: i) pré-núcleo, parte inicial da pergunta que precede o que será perguntado (“você quer/prefere”); ii) primeiro núcleo disjuntivo, vocábulos que aparecem na primeira posição da pergunta, isso é, antes da conjunção alternativa “ou” (“leite/vinho”); iii) segundo núcleo disjuntivo, vocábulos que aparecem em posição final da pergunta e estão após a conjunção alternativa (“café/cerveja”). De um modo geral, nossos resultados apontam para um padrão melódico presente nas disjuntivas brasileiras: movimento de queda ao longo do pré-núcleo, ascendência no primeiro núcleo com elevação expressiva na tônica que precede “ou” e uma queda contínua a partir do vocábulo alternativo até encerrar o enunciado em um nível totalmente baixo. Entretanto, nossos dados apontam para características melódicas que nos permitem diferir os falares da região amazônica. Em relação à configuração pré-nuclear, o movimento descendente é o padrão encontrado em todas as cidades, no entanto, a formação de um pequeno pico inicial foi encontrada em Boa Vista, Manaus, Porto Velho, Rio Branco e Cuiabá. Já em relação ao fim do movimento entoacional, todas as capitais apresentaram descenso, porém, há registros de elevação na sílaba final da pergunta nos falares de Belém, Boa Vista, Manaus e Rio Branco. Esses resultados nos permitem dividir a região amazônica em duas áreas dialetais, a primeira referente à formação de pico inicial identificada nos falares na faixa que recobre o centro-oeste e o norte do Brasil, enquanto os mais ao norte formam-se com movimento de elevação ao fim da pergunta.
Antônia Fernanda de Souza Nogueira
(UFPA)
Visualização de anotação linguística e arquivo de áudio e/ou vídeo correspondente: ELAN, FLEx e LingView
O presente trabalho se insere no âmbito da documentação linguística (GIPPERT, HIMMELMANN, MOSEL, 2006), entendida como compilação e preservação de dados linguísticos primários, e apresenta uma metodologia preliminar de disponibilização de anotações linguísticas e suas mídias correspondentes, por meio de ferramentas de visualização amigável a uma audiência ampla e de manuseio relativamente simples. A proposta de metodologia é aplicada, a título de exemplo, a dados primários da língua Wayoro (família Tupi, subfamília Tupari) publicados na tese de doutorado (Nogueira, 2019a) e em artigos (Nogueira, 2019b; Nogueira, 2015), mas pretende ser replicada aos dados de qualquer língua ou dialeto. Conforme Gries e Berez (2017) e Himmelmann (2006), uma anotação linguística consiste de, minimamente, uma transcrição e uma tradução de um arquivo de áudio e/ou vídeo (dados primários) de uma dada língua. É possível que a anotação seja muito mais elaborada, contendo vários níveis de anotações interlinearizadas (transcrição fonética ou fonológica, glosas morfológicas, etc.), bem como comentários etnográficos e descrição de gestos. Os softwares ELAN (Eudico Linguistic Annotator) e FLEx (Fieldworks Language Explorer) são exemplos de ferramentas que permitem a anotação linguística de arquivos de áudios e/ou vídeos. O FLEx, contudo, não alinha a anotação ao arquivo de mídia correspondente. Em pesquisas de descrição linguística, tais anotações linguísticas são a base para a elaboração das análises. No entanto, é comum que os dados primários correspondentes a uma dada anotação e/ou análise permaneçam inacessíveis e inverificáveis ao público em geral (HIMMELMANN, 2006). Para sanar essa dificuldade, Pride, Tomlin e Anderbois (2020) elaboraram o LingView, uma interface na internet prática e amigável para visualização de dados linguísticos anotados a partir do ELAN e do FLEx, possibilitando a aproximação dos dados, por um lado, ao público sem treinamento nesses softwares, e, por outro lado, a uma audiência científica que deseje um exame linguístico mais minucioso.
Autoras: Antônia Fernanda de Souza Nogueira e Rayanne Corrêa Sarraf Silva
Patrícia Goulart Tondineli
(UNIR)